Conforme reportagem do jornalista investigativo Lucas Regazzi, publicada no Portal O Fator, de Minas Gerais, nesta terça-feira (15), advogados que atuam na defesa dos atingidos pelo rompimento da barragem de Mariana relatam viver um caos institucional desde a homologação do novo acordo de reparação firmado entre União, Estados, Ministério Público e as mineradoras responsáveis pela tragédia. Eles apontam que, na prática, o encerramento das ações judiciais e a migração de todos os processos para o sistema extrajudicial do Programa de Indenização Definitiva (PID) colocaram nas mãos da própria Samarco, mineradora responsável pelo desastre, o poder de decidir quem terá direito à reparação — sem possibilidade clara de recurso ou revisão independente.
Desde a implementação do PID, a rotina dos advogados ficou marcada por incertezas. Eles denunciaram à reportagem que analistas da Samarco e da Fundação Renova têm rejeitado pedidos de indenização sem justificativas claras. Demandas semelhantes ora são aceitas, ora rejeitadas, sem uniformidade. Em muitos casos, não há sequer canais institucionais eficazes para que advogados e atingidos questionem ou recorram das decisões.
O PID prevê a indenização em parcela única e individual de R$ 35 mil por pessoa física ou jurídica. O programa fica aberto até 26 de maio e os pagamentos começam ainda no primeiro semestre de 2025. O programa visa atender às pessoas que ainda não foram contempladas com indenização e, segundo a Samarco, “apresentem comprovante de residência emitido em qualquer data na área reconhecida pelo Acordo de Reparação, e documento de identificação, desde que cumpram os demais critérios de elegibilidade (como, por exemplo, serem maiores de 16 anos na data do rompimento e terem solicitado cadastro na Fundação Renova até 31 de dezembro de 2021 ou iniciado ação judicial, no Brasil ou no exterior, até 26 de outubro de 2021)”.
Em comunicado enviado ao Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6), um grupo de advogados que atuam em casos da Samarco elenca problemas recorrentes: cancelamentos e notificações sem justificativa, descumprimento de decisões anteriores, dificuldades de comunicação com analistas, e casos de processos encerrados sumariamente, sem direito a recurso.
“A ausência de padronização nas análises conduzidas pelos colaboradores da Fundação Renova e/ou da Samarco é um vício estrutural que historicamente compromete a isonomia no tratamento dos atingidos. A situação se agrava com a homologação do Acordo de Repactuação pelo STF, uma vez que não há, até o momento, canal institucional eficaz ou instância claramente definida para impugnação e correção de eventuais descumprimentos das obrigações pactuadas”, afirma Thiago Lopes, advogado que atua em diversos processos de reparação.
O novo sistema, apontam as entidades e advogados, fragiliza garantias básicas de defesa. Relatos dão conta de processos encerrados sem aviso prévio, documentos exigidos retroativamente e recusas baseadas em critérios subjetivos. “A reparação se transformou em um sistema que se autoalimenta, onde as empresas se beneficiam da própria torpeza, mantendo-se no controle absoluto do processo. Enquanto isso, o atingido espera. E o advogado, impedido de atuar, assiste à violação da própria Constituição”, descreve um relatório da Frente em Defesa dos Atingidos pelo Rio Doce (FredaRio).
No Portal do Advogado, canal oficial de comunicação, respostas chegam com atraso ou nem chegam, impossibilitando qualquer reação dentro dos prazos do novo acordo. Isso tem levado a perdas de direitos para quem, após anos de espera, enfrenta uma nova maratona burocrática.
O sistema de análise do PID concentra, na prática, todas as funções críticas nas mãos das empresas rés. São elas que recebem, analisam, julgam, auditam e decidem os pedidos de indenização. Desde a análise de um simples comprovante de residência à decisão final sobre o direito à reparação, tudo passa pelo crivo da Samarco ou da Fundação Renova.
“Chega ao absurdo de caber a elas a palavra final sobre se um comprovante de endereço é verdadeiro ou falso, mesmo sem decisão judicial ou perícia”, aponta uma das denúncias.
Divergências e “aleatoriedade” nas decisões de documentação são recorrentes. Um comprovante de internet pode ser aceito para um atingido e rejeitado para outro, mesmo nos mesmos moldes, apontam exemplos listados por advogados da região de Aimorés. Documentos emitidos pelo CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) são aceitos em alguns casos, negados em outros.
Casos de impacto individual revelam os obstáculos do novo sistema. Uma requerente identificada como C. da Silva Santos teve o pedido paralisado automaticamente com base em um suposto vínculo ao sistema Agro-Pesca, embora jamais tenha exercido atividade pesqueira. Não lhe foi concedida chance de recorrer ou apresentar esclarecimentos. O caso ilustra falhas graves nos cruzamentos de dados e prejuízo direto para o direito à reparação.
Pedidos de indenização têm sido indeferidos por ausência de documentos que não eram exigidos originalmente. Advogados relatam que, agora, passou a ser obrigatória uma declaração da assistência social municipal para famílias vulneráveis — documento inexistente para registros mais antigos. Até documentos com firma reconhecida têm sido rejeitados sob alegação de dúvida quanto à autenticidade.
No relatório oficial apresentado à OAB de Minas e à Samarco, a FredaRio lista ainda problemas sistêmicos no próprio funcionamento das plataformas NOVEL e PID: impossibilidade de inclusão de novos pedidos para casos finalizados, erros de cadastro, falta de uniformização em critérios para aceitação de documentos e ausência de canais de atendimento eficazes. Há registros de “bugs” e falhas técnicas que impedem o andamento regular dos processos, com CPFs de atingidos bloqueados indevidamente.
Prazos curtos, falta de transparência nas decisões e restrição a mudanças de advogados em meio a pedidos ativos também são obstáculos. “O mínimo que se requer é um atendimento que realmente funcione, atenda e trate com a devida urgência as demandas necessárias ao bom andamento do procedimento”, destaca o relatório.
Advogados cobram atuação efetiva das instituições de justiça que homologaram o acordo. “É fundamental que Ministério Público Federal, Ministério Público Estadual e Defensoria Pública exerçam, de forma ativa e permanente, o controle da legalidade e a tutela dos direitos dos atingidos, sob pena de grave violação à segurança jurídica e ao princípio da proteção integral às populações vulnerabilizadas”, afirma Thiago Lopes.
Enquanto isso, atingidos pela tragédia seguem invisíveis diante de um sistema que, ao encerrar vias judiciais e centralizar o controle nas mãos das empresas responsáveis, perpetua o risco de injustiça e revitimização — deixando advogados e populações vulneráveis diante de uma “roda-viva” de indeferimentos, omissões e falta de garantias mínimas de defesa e contraditório.
O que diz a Samarco
Procurada pela reportagem, a Samarco afirmou, em nota, que tem realizado reuniões para esclarecer dúvidas. Confira o posicionamento na íntegra:
“A Samarco esclarece que tem feito uma série de reuniões nas Subseções da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) dos territórios listados no Acordo de Reparação a fim de esclarecer dúvidas acerca dos processos indenizatórios.
A empresa destaca que algumas unidades dos Centros de Informação e Atendimento (CIAS) como, por exemplo, Governador Valadares e Mariana – em Minas Gerais, e Linhares, Baixo Guandu e Colatina – no Espírito Santo, contam com uma equipe de facilitadores, disponível para atendimento de advogados e requerentes. Tanto o CIAS quanto a equipe de facilitadores também realizam atendimentos itinerantes em cidades dos territórios. Os CIAS são espaços para atendimento a pessoas atingidas e cidadãos em geral para esclarecimento de dúvidas sobre indenizações e outras temáticas da Reparação. Para além do atendimento no CIAS, os advogados também podem entrar em contato pelo 0800 031 2303 e pelo e-mail [email protected].
A Samarco reitera que cumpre rigorosamente as obrigações previstas no Acordo de Reparação, respeitando os critérios, prazos e fluxos estabelecidos para cada iniciativa indenizatória individual. Todos os programas — incluindo o Programa Indenizatório Definitivo (PID), Novel, PIM-AFE e Agro e Pesca — possuem regras, com exigências documentais específicas previstas no Acordo.
O PID conta com um fluxo organizado de comunicação com os representantes legais, que são notificados pela própria plataforma sempre que há necessidade de complementação de dados ou documentos. O prazo para ingresso no PID vai até 26 de maio.
Em caso de negativa no Sistema PIM-AFE, Novel e Agro e Pesca, ainda será possível ingressar no PID dentro do prazo de até 90 dias corridos após o recebimento da negativa, exceto nos casos de diagnóstico de fraude. Lembrando que as portas indenizatórias não são cumulativas.
As informações detalhadas sobre indenização estão disponíveis no site samarco.com/indenizacao.”
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